segunda-feira, 18 de fevereiro de 2019

TROPICALISMO


“Eu organizo o movimento”, diz um verso de “Tropicália”, a canção-manifesto de Caetano Veloso, que deu nome a um dos movimentos mais férteis e efervescentes dos anos 60.

O autor não mentiu. Caetano foi de fato quem mais contribuiu para fixar as bases do tropicalismo, em 1967, firmando-se como seu maior mentor, compositor e divulgador.

Foi também no contexto dos festivais que se plantou a semente da Tropicália, exatamente quando as canções de protesto começavam a dar sinais de sectarismo e caretice, repetindo fórmulas musicais e poéticas.

Embora o movimento tenha sido enunciado em 1968, com o lançamento do álbum coletivo Tropicália ou Panis et Circensis, sua origem remonta ao Festival da Record do ano anterior, quando Caetano e Gilberto Gil apresentaram duas canções identificadas com as propostas éticas e estéticas do grupo: “Alegria, Alegria”, de Caetano, e “Domingo no Parque”, de Gilberto Gil.


Nelas, surgiam alguns elementos formadores do tropicalismo, como a preferência por letras descritivas e cinematográficas, o uso de guitarras elétricas em conjunção com instrumentos afro-brasileiros (coisa que os nacionalistas consideravam acintosa), e versos que citavam produtos industriais e ícones da cultura de massa, como em “eu tomo uma Coca-Cola”.

Sua consagração veio no ano seguinte, o interminável ano de 1968, quando as notícias que desembarcavam de Paris sugeriam novas formas de engajamento, uma nova atitude diante da revolução.

A pauta da liberdade política somava-se agora a outras pautas, essencialmente comportamentais, nas quais o conceito de liberdade extrapolava os contornos dos direitos civis para alcançar os direitos individuais.

Liberdade sexual, liberdade de escolhas, liberdade para usar drogas ou meter uma guitarra distorcida no meio de um samba, tudo isso começou a virar do avesso a estética gasta que predominava nas canções de protesto.


Além de Gil e Caetano, o movimento teve entre seus principais articuladores os também compositores Tom Zé, Capinan e Torquato Neto, as cantoras Gal Costa e Nara Leão, o grupo de rock Os Mutantes e os maestros Júlio Medaglia e Rogério Duprat.

Os dois últimos foram de fundamental importância para o sucesso da empreitada, uma vez que os arranjos concebidos para as principais gravações, desde “Alegria, Alegria” e “Domingo no Parque”, ajudaram a compor o DNA da nova sonoridade.

Até Nara Leão, ex-musa da bossa nova e do Show Opinião, se aproximou dos tropicalistas, cantando no álbum coletivo Tropicália ou Panis et Circensis, de 1968.


Esse disco transbordava de novidades. Os músicos, em sua maioria baianos, faziam exatamente o que não podia ser feito. Ao menos segundo os cânones da música de protesto, tão em voga naquele período de patrulha generalizada.

Para melhor explicitar o objetivo de incorporar tudo o que era considerado alienígena ou de mau gosto, homenageavam a música cafona de Vicente Celestino, de quem Caetano regravou “Coração Materno”. Reverenciavam o iê-iê-iê alienado de Roberto Carlos, citado em “Baby”.

Contaminavam o batuque de “Bat Macumba” com rifes de guitarra distorcida. Abusavam de estrangeirismos (“I love you”, em “Baby”, “made in Brazil”, em “Geleia Geral”) e recomendavam a todos que aprendessem inglês.

Falavam de margarina, louvavam o Senhor do Bonfim. E ainda ousavam criticar o regime em rápidas incursões pelo universo bélico, como na presença do policial que tudo observa em “Lindonéia” ou no disfarçado tripé brasil-fusil-canhão, soletrado à moda baiana em “Miserere Nobis “: “be-re-a-bra, ze-i-le-zil/ fe-u-fu, ze-i-le-zil/ ce-a-ca, nê-agá-ao-til-nhão/ ora pro nobis/ ora pro nobis”.

“Afinal, ele é nosso avô”, chegou a declarar Tom Zé para justificar por que achava que Chico Buarque, oito anos mais novo do que ele, deveria ser respeitado. Isso porque Chico preferia compor sambas e marchinhas, estilos musicais fundados na tradição, enquanto os tropicalistas difundiam o projeto de modernizar a música brasileira, a partir da apropriação de elementos externos, instrumentos elétricos e temas representativos da sociedade de consumo. “Nem toda loucura é genial, nem toda lucidez é velha”, escreveu Chico Buarque, num artigo de jornal, para rebater a patrulha de Tom Zé, ainda em 1968.


Como numa fábula, o feitiço se disseminara rapidamente pela música brasileira entre 1967 e 1968, ano em que Caetano, Gil, Tom Zé e Os Mutantes lançaram discos altamente influenciados pelas teses do movimento (o LP de Gal sairia no comecinho do ano seguinte).

A influência do tropicalismo chegou às artes e à moda, contribuindo para disseminar no país os cabelos compridos, os adereços hippies, os princípios do manifesto antropofágico de Oswald de Andrade e o conceito recente de contracultura.

Todo esse pessoal, no final de 1968, reuniu-se no palco do programa Divino Maravilhoso, criado pela TV Tupi na esteira da onda tropicalista.

Mas o movimento praticamente desapareceu em 1969. A prisão de Caetano e Gil às vésperas do Natal de 1968, dez dias depois do AI-5, e seu exílio em Londres por dois anos contribuíram para sufocar o grito libertário daquela turma, embora suas influências se estendam a toda a obra posterior desses artistas.

Sem deixar de dialogar com os dilemas do Brasil e da identidade nacional, os tropicalistas abriram a música nacional, tanto filosófica quanto geograficamente, deixando-se envolver em lufadas de rock.

O movimento legitimou as raízes do que viria a ser o rock brasileiro, inaugurado ainda nos anos 60 com Os Mutantes, e consolidado a partir da década seguinte, primeiro com Raul Seixas e Secos & Molhados, desde 1973, e, em seguida, com bandas atuantes no período da abertura e das Diretas, como a Blitz e o Ultraje a Rigor.


“Alegria, Alegria (Caetano Veloso) Principal intérprete: Caetano Veloso”. Caetano Veloso foi buscar no bordão do showman Wilson Simonal, o rei da pilantragem, o título da canção que deflagrou a Tropicália. Ao mostrá-la no Festival da Record de 1967, o baiano chocou o público com o ineditismo de um arranjo repleto de guitarras, e uma letra que falava em coca-cola ao mesmo tempo em que servia de manifesto paz e amor com seus desencanados versos iniciais: “Caminhando contra o vento/ sem lenço sem documento/ num sol de quase dezembro…”.

“Domingo no Parque (Gilberto Gil) Principal intérprete: Gilberto Gil”. Tal qual “Alegria, Alegria”, de Caetano Veloso, “Domingo no Parque” surgiu no Festival da Record de 1967 para confundir. Com uma cadência calcada no toque de um berimbau, como um ponto de capoeira, a harmonia da canção se servia das guitarras d’Os Mutantes para combinar tradição e modernidade, regionalismo e cosmopolitismo. Tudo isso numa letra longa e fragmentada que parecia converter num vertiginoso roteiro de cinema uma sinopse emprestada de uma coluna policial de um jornal popular.

“Divino Maravilhoso (Caetano Veloso e Gilberto Gil) Principal intérprete: Gal Costa”. Gal Costa começou o ano de 1968 como a menina doce que cantava bossa nova, ganhando na Bahia o apelido de “João Gilberto de saias”, e terminou como a tresloucada garota de cabeleira desgrenhada que gritava “é preciso estar atento e forte”, alto o bastante para esconder as vaias que recebeu na final do 4º Festival da Record. As guitarras ainda incomodavam parte do público. Mesmo assim, “Divino Maravilhoso” ficou em terceiro lugar. Bastou para que a TV Tupi criasse a toque de caixa um programa com o mesmo nome, no qual Gal Costa, Caetano, Gil, Tom Zé e Os Mutantes recebiam convidados como Jorge Ben e outros. Graças à cantora, então mais conhecida como a intérprete de “Baby”, o tropicalismo chegava à televisão.

“Tropicália (Caetano Veloso) Principal intérprete: Caetano Veloso”. A música-manifesto do movimento foi lançada num álbum solo de Caetano Veloso, em janeiro de 1968, e funcionou como uma espécie de trailer, ou teaser, do fenômeno que estava prestes a deflagrar. Como num preâmbulo, a canção apenas sugeria o que viria a ser o tropicalismo propriamente dito, conceituado e consolidado meses depois, no álbum coletivo homônimo (formado apenas por músicas inéditas, ele não inclui a canção “Tropicália”). Aqui, Caetano surge em clima de suspense, abrindo caminho em meio à mata tropical para seu bloco passar, não sem prestar a devida homenagem a tudo o que o precedia: “A Banda”, Carmen Miranda, O Fino da Bossa, “Quero Que Vá Tudo Pro Inferno”, tudo isso já era passado.

“Baby (Caetano Veloso) Principal intérprete: Gal Costa”. Sem dúvida o maior hit do álbum seminal do movimento, essa canção foi feita por Caetano para ser gravada por Maria Bethânia. Ela inclusive tinha dado algumas orientações, como a sugestão do título, e as menções a Roberto Carlos e a uma camiseta na qual fosse possível ler “I Love you”. Como a irmã de Caetano optou por ficar fora do movimento, mantendo a postura de artista independente que a caracterizou por toda a vida, o hit caiu no colo de Gal Costa.


A música popular como veículo de crítica e resistência às ditaduras militares não foi importante apenas no Brasil. Além de estarem ligadas aos movimentos de esquerda que defendiam mudanças na América Latina, a canção engajada foi um importante foco de resistência depois dos golpes de Estado.

Genericamente conhecida como “nueva canción”, a canção engajada denunciava as mazelas sociais, mobilizava as paixões políticas, elogiava os heróis individuais e coletivos que lutaram (no passado longínquo) e ainda continuavam lutando nos idos dos anos 1960 e 1970 por uma nova realidade na América Latina.

A Tropicália foi bastante influenciada pela Guerra Fria e muitos membros do movimento eram contra a Guerra do Vietnã e pediram a retirada dos Estados Unidos do conflito. Outros membros eram apoiadores da União Soviética, pois para eles, defender a União Soviética é defender os direitos do trabalhador.

A década de 1960 era de intensa transformação cultural: Hélio Oiticica, mudava o rumo das artes. No cinema, Glauber Rocha filmava Terra em transe e Joaquim Pedro de Andrade, Macunaíma. Chico Buarque escrevia "Roda Viva", em 1966, e José Celso Martinez Corrêa montava O Rei da Vela, de Oswald de Andrade. A proposta, ou a transformação requerida pelo tropicalismo, consistia em deglutir todas as tendências, informações, manifestações do pensamento e então expressar a realidade do artista brasileiro.



Pop Art

A grande diferença entre as duas propostas (a antropofágica e a tropicalista) é que a primeira estava interessada na digestão da cultura erudita que estava sendo exportada, enquanto os tropicalistas incorporavam todo tipo de referencial estético, seja erudito ou popular.

Acrescente-se a isso uma novidade: a incorporação de uma cultura não necessariamente popular, mas pop). O movimento, neste sentido, foi bastante influenciado pela estética da pop art e reflete no Brasil algumas das discussões de artistas pop (como Andy Warhol).

Ainda que tenha sido bastante influenciado por movimentos artísticos que costumam estar associados à ideia de vanguarda negativa, o Tropicalismo também se manifestou como um desdobramento do Concretismo da década de 1950 (especialmente da Poesia concreta). A preocupação dos tropicalistas em tratar a poesia das canções como elemento plástico, criando jogos linguísticos e brincadeiras com as palavras é um reflexo do Concretismo.



Fim do Tropicalismo

Em 1968, os Mutantes realizaram o seu último concerto com Caetano e Gil. Foi durante a conturbada temporada na carioca boate Sucata, no qual ocorreu o famoso incidente da bandeira nacional, que, supostamente, foi desrespeitada, no entender dos militares que governavam o Brasil naquela época. 

Durante o espetáculo, foi pendurada no cenário do espetáculo uma bandeira, obra do artista plástico Hélio Oiticica, com a inscrição "Seja Marginal, Seja Herói", com a imagem de um traficante famoso naquela época, o Cara-de-Cavalo, que havia sido assassinado violentamente pela polícia.

Os militares alegaram ainda que Caetano teria cantado o Hino Nacional inserindo versos ofensivos às Forças Armadas. Isto tudo serviria de pretexto político para que os militares suspendessem a apresentação e prendessem Caetano e Gil, posteriormente, soltos e exilados no Reino Unido. O episódio é considerado como o fim do movimento vanguardista.

Pós-Tropicalismo

O pós-tropicalismo (1969-1974) foi um movimento surgido logo após o tropicalismo, sendo caracterizado por músicas de caráter "sombrio", a automarginalização, a solidão, a tristeza, a escuridão, a temática da morte e o sentimento de derrota. Os músicos surgiram com uma postura do baixo astral, da frustração dos sonhos de resistência e da própria derrota, assumindo posturas hippies ou "alternativas”.

Teve como sua maior representante a cantora Gal Costa, que já era considerada a musa do movimento tropicalista e após a prisão e o exílio de Caetano e Gil, permaneceu como a única porta voz do movimento, adotando uma postura mais agressiva no início e posteriormente mais hippie.

Carmen Miranda a "pequena notável", acabou por expor ao mundo uma visão caricata e estereotipada do Brasil. No auge da "política da boa vizinhança" entre os Estados Unidos e a América do Sul, sua imagem latina era explorada pelos estúdios à exaustão. Tal exposição internacional fez despertar na intelectualidade brasileira um certo sentimento de desprezo por sua figura, acusando-a de tornar-se "americanizada".

As imagens de Carmen Miranda voltam à cena durante o movimento tropicalista. Ícone da cultura popular e do exagero estético, sua figura era evocada menos por sua importância musical na cena brasileira e mais pela sua vinculação a uma imagem estereotipada e "tropical" do Brasil. A cantora viria a ser assumida como um dos ícones tropicalistas, estando presente tanto nas letras de canções (como "Tropicália", de Caetano Veloso), quanto nas imitações dos trejeitos da artista – o torcer das mãos e o revirar dos olhos – com que Caetano Veloso por mais de uma vez brindou/provocou a plateia.

Músicas Tropicalistas Mais Populares

"Tropicália" (Caetano Veloso, 1968)

"Alegria, Alegria" (Caetano Veloso, 1967)

"Domingo no parque" (Gilberto Gil, 1967)

"Panis et Circencis" (Gilberto Gil e Caetano Veloso, 1968)

"Atrás do trio elétrico", (Caetano Veloso, 1969)

"Cadê Tereza" (Jorge Ben Jor, 1969)

"Aquele Abraço" (Gilberto Gil, 1969)

"País Tropical" (Jorge Ben Jor, 1969)

"A Minha Menina" (Os Mutantes, 1968)

"Divino, Maravilhoso" (Gal Costa, 1968)


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